Ele tirou a última folha do calendário. Mais um ano vivido. Ou seria menos um a viver? A ordem dos fatores, neste caso, altera o produto. Podia se considerar sortudo, acumulando décadas de experiência. A mesma sina não deu sobre muitos dos amigos de infância e juventude.
Continuava usando agendas tradicionais, mesmo marcando alguns compromissos na agenda do celular. Não faltavam meios e fontes, aliás, para mantê-lo informado sobre o passar do tempo. O espelho do banheiro, o velho carrilhão na parede da sala, as fotos antigas espalhadas pela casa. Não que fossem inimigos, o tempo e ele. Davam-se bem, a propósito.
Ele não se lamentava, não se revoltava e, em retribuição ou por piedade, o tempo ia lhe dando espaço, fingindo que dele não se lembrava o nome, o endereço ou o caminho das muitas rugas acumuladas.
O fado é que se preparava para iniciar mais um ciclo, mais uma maratona de doze bases, trezentos e sessenta e cinco obstáculos. Naquele novo ano, completaria nove décadas desde que dera as caras no mundo. Era irônico pensar que agora caminhava de forma bem parecida como fazia nos primeiros meses de vida, fosse porque o fazia de forma titubeante, fosse porque não fazia a menor ideia de para onde seguia.
Vivera bem até ali. Sobrevivera a algumas doenças, a muitas desilusões. Houve encontros e desencontros. Partidas e chegadas. Apaixonara-se uma dezena de vezes, todas de forma definitiva, até que deixaram de ser. Tivera um único filho, uma criatura gentil, que o visitava com as netas, já adultas, todos os finais de semana. Naquelas tardes, ele fingia apreciar o café de cápsulas caras que o filho levava, bem como o bolo sem glúten preparado pela neta nutricionista.
Conversavam sobre amenidades, o filho insistindo para que morassem juntos, no quarto que já estava mobiliado do jeito que ele gostava. “No ano que vem, pode apostar que irei”, respondia, piscando um olho para a neta mais jovem. Antes de ir embora a moça se aproximava e sussurrava ao avô: “vou transformar aquele quarto em uma biblioteca, daí o senhor muda para lá, com toda certeza.”
Havia mais de dez anos que vivia sozinho e, até onde podia avaliar, estava tudo sob controle. Tinha ajuda para limpeza da casa e para se deslocar para não pudesse ir caminhando. Para surpresa de muitos, ainda trabalhava como tradutor, dedicando ao menos metade do dia na leitura de títulos em alemão. O filho havia dito que em breve, no máximo em dez anos, ninguém precisaria mais de tradutores, porque os computadores fariam tudo isso sozinhos. Ele dava de ombros, dizendo que preferia planos a curto prazo.
Naquele ano, como em todos os outros, ganhou de Natal, da nora, um livro. Ao abri-lo, dias depois, notara que o livro estava em branco. “É para o senhor escrever a sua própria história”, disse-lhe ela ao telefone. Por dois dias, porém, deixou o objeto de lado, sem pensar sobre o assunto. No quase fechar daquele ano, já vestido de branco, esperando as festividades em família, recostou-se na poltrona da sala e se deixou perder em lembranças.
Abriu a primeira página e começou a escrever. Para dentro das páginas pularam seus pais, seus irmãos, muitos amigos, seus animais de estimação, as mulheres que amou, os sonhos que viveu, alguns baldes de lágrimas, o dobro deles de sorrisos. Deixou também fluir os medos, as tolices, uma pá de sonhos e outras de cal. Se haveria páginas suficientes para tanta vida, ele não sabia. Nem mesmo podia prever o momento em que a palavra Fim seria colocada, mas teve certeza, mais do que nunca, que estava disposto a não soltar a caneta até que a tinta se acabasse.